Réquiem para Luciano Popó

Amigo Popó

Lá se vão 32 anos. Idade da maioria das fotos que ilustram esse post. Era um tempo de reuniões para a formação de um partido que se pretendia o primeiro verdadeiramente do trabalhador. Ideias brilhantes e sonhos de um país livre conflitavam com a realidade crua da ditadura militar que impedia as manifestações públicas e a liberdade de expressão.

REC - Pelourinho 1981 - quarto 304A turma deu um tempo nos estudos para tirar a foto, no quarto 304 da REC, no Pelourinho, para esta foto numa noite de 1981. Luciano Popó, barbudo, de camisa amarela

Em Salvador, a Residência do Estudante de Conquista (REC) era o local onde morávamos. Era a parte material da entidade CEUSC (Centro de Estudantes Universitários e Secundaristas de Conquista), por onde passaram e passariam figuras que se destacariam na política e em diversas profissões (médicos, advogados, jornalistas, economistas, sociólogos, dentistas e professores).

Atividade esportiva do CEUSC-REC nos Barris em 1980Atividade esportiva dos “requianos” nos Barris, em 1980. Luciano Popó é o primeiro em pé, à direita

Nessa época, além da criação do partido – que trinta anos depois dominaria a cena política brasileira – o CEUSC publicava o jornal Cálice, fazia edições especiais sobre a história de Conquista, incentivava universitários e secundaristas na literatura, na poesia, nas charges e quadrinhos, promovia peças teatrais e formava grupos de estudos políticos na REC; socializava informações com os moradores do Pelourinho e do Maciel (então, zonas de prostituição) e liderava manifestações em Conquista.

Com toda a dificuldade, mas com ajuda do proprietário da Lanchonete Lisboa e de outros comerciantes, o grupo alugou uma sala na Rua do Triunfo, em Conquista, a primeira sede do partido e ponto de apoio para o CEUSC. Alguns inimigos políticos da época, que tanto fizeram para acabar com a casa, hoje estão instalados em burocráticos cargos no governo estadual.

Reunião no fórum em 1980 - Luciano Popó - Fernando Zamilute e Paulo RochaFernando, Luciano e Paulo Preto conversam pouco antes de uma reunião no antigo fórum de Conquista, em 1980, hoje Câmara de Vereadores

As eleições de diretoria tanto para o CEUSC quanto para a REC eram feitas pelos moradores da residência. No início dos anos 80, Luciano Dias Brito – ou simplesmente Luciano Popó – presidia o CEUSC. A REC era presidida por José Bomfim, o Brown. Criação e produção fervilhavam na entidade e na casa. Depois de endereços nos bairros da Saúde e de Nazaré, nos anos 80 a REC situava-se onde hoje é o Hotel Solara, ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Praça José de Alencar, no Pelourinho. Em 81, ordenada por ACM a PM invadiu a residência deu tiros (em Beline e Erivaldo) e prendeu mais de 60 estudantes. A partir daí CEUSC e REC viraram peças históricas.

Reunião na casa de Dona Mera - 05-11-1980Reunião no quintal da casa de dona Mera (a mãe do Brown), para discutir os ideais de um partido dos trabalhadores, em 5 de novembro de 1980

O longo preâmbulo é para contextualizar a amizade desse grupo, a solidariedade numa época em que tudo era contrário e para chegar à notícia da morte de Luciano Popó. Na segunda-feira, 15 de outubro, Paulo Rocha, o famoso Paulo Preto da Rua do Alecrim, um dos primeiros a aderir à ideia de um partido político de trabalhadores, um dos primeiros a apoiar a ideia de Jersulino, o Binho (ex-morador da REC, ex- deputado e guru de quase toda essa turma) de lançarmos um candidato a vereador na Conquista ainda dominada pela Arena. Lançamos Nivaldo Bozim e marcamos ponto na História.

Pois bem, Paulo Preto me telefona por volta das 21 horas com a informação de que Luciano Popó morreu. Fora assassinado numa briga de bar. Mais detalhes ele buscaria, pois o assassinato ocorrera em 14 de setembro e só no domingo, 14 de outubro, é que Paulo soube. Mais tarde, por e-mail, ele me manda o link do comentário de Ruy Medeiros (advogado, historiador, professor), uma das grandes figuras da Conquista contemporânea, comentando brilhantemente a passagem de Popó por esse planeta.

Ainda aturdido com a notícia, rememorei nosso último encontro. Depois de uns 5 anos sem nos encontrar, vi e falei rapidamente com Popó em março deste ano. Ele tinha planos de organizar uma biblioteca em Rio de Contas. Combinamos de nos ver.

As notícias que me chegaram eram de que enlouquecera, álcool e outras drogas estariam a lhe tirar a lucidez, não sei, não chegamos a nos encontrar de novo e colocar a conversa em dia.

Tenho farto material do inquieto Popó. Cartas de todas suas fases, quadrinhos, charges, poemas. Que farei? O material demonstra que a inteligência do autor era ampla. Sonhador, misturava realidade com ficção e obrigava muito esforço dos interlocutores em acompanhar suas ideias.

As fotos e o comentário de Ruy Medeiros ajudam a entender melhor a homenagem que pretendi fazer ao amigo Luciano Popó.

Reunião na casa de Dona Mera - março de 1980Reunião na casa de dona Mera, no bairro Sumaré, em Conquista, em março de 1980

Para você, Popó, saudades, abraço e um feliz encontro com Binho, Erivaldo, o Peri; a pequena Naílde; Marinho Puba; Marcos Menezes; e outros “requianos” que já partiram.

Bomfim

Conversa de Balcão publica:

Por Ruy Medeiros

Luciano Popó: Popó de poeta, que era. Em verdade, Luciano Dias Brito, filho de Alziro Prates Brito e Violeta Dias Brito.

Luciano se foi aniquilado em sua angustia , em 14.09.2012. Que a terra lhe seja leve.

Foi jovem que prometia brilhar. No Colégio Central da Bahia (Salvador) concluiu o ensino médio. Prestou vestibular e estudou, até o quarto semestre, Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia. Fez cursos livres (extensão) de xilogravura no Museu de Arte Moderna da Bahia, e desenho, na Escola de Belas Artes da UFBA.

Um tempo, andou ausente. Depois retornou a Vitória da Conquista e foi para Belo Campo, cidade que ele imaginava que seria poupada pela grande hecatombe que destruiria os seres vivos da Terra.

Fazia boa poesia. Não sei onde, nem com quem se encontram seus versos. Talvez com Sandra?

Conservei, e conservarei, conforme seu pedido, um álbum encadernado em espiral, que ela me ofertou, contendo seus cartuns, charges, ilustrações, quadrinhos e três textos, publicados no Diário do Sudoeste, entre os anos de 1995 e 2000, e no Piquete (boletim do Sindicato dos Bancários). Deixou alguns quadros, em tela, adquiridos por poucos amigos. Após este texto, pode-se ver a qualidade de quadrinista de Luciano.

Jovem, Luciano Brito participou do Ceusc – Centro dos Estudantes Universitários e Secundaristas de Conquista e ilustrou edições de seu jornal – Cálice, na década de 1970. Integrou no movimento Emergente (fins de 1979 – 1982), com Jorge Luiz Melquisedeque, Antonio Calmon,  Jean Claúdio, Joan Barreto, Zélio Costa e Paulo Cesar Melo. Desenhou imagens desconcertantes e poesia em muro da cidade. No “Solo de Caneta” há alguns versos seus (espero que não sejam os únicos sobreviventes), de 1981.

Inquieto, Luciano Brito nos últimos anos se atormentava entre fumaça e pó de ruas sem saída.

Aperreios para encontrar dinheiro para sobreviver eram constantes. Tentou retornar à pintura e realizou alguns quadros. Mas era o angustiado de sempre. Aquele mesmo angustiado que há trinta e um anos disse:

“No forno
do peito
dos homens
existe um fio
que vive
de assar as lágrimas”.

Em seu  “movimentos da sede”:

1

Prender a água
dos esgotos
num frasco
sobre a penteadeira

2

Perseguir
a última gotadágua
não como quem tem sede
com o ódio
de um afogado
que há três dias
dorme
e janta algas
no leito do lago

Penúltimo

vou afogarme
na prateleira
do primeiro
bar”.

Tiras de Luciano Brito, nos 500 anos do Brasil.


26 comentários sobre “Réquiem para Luciano Popó

  1. Conheci Luciano em São Thomé das Letras (MG) em 1985. Ele fazia parte de um grupo de restauradores do IEPHA que trabalhavam na restauração da Igreja de São Thomé. Após alguns problemas que tiveram, foram embora – sem concluir o trabalho – e nunca mais tive notícias dele. Soube, hoje cêdo, por uma postagem de Sandra (ex dele) em um grupo de fotografias antigas no Facebook. Triste saber que tudo acabou assim.

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    1. Pois é, José Bento. E assim aconteceu. Mas é ótimo para todos que veem o blog ler o que você escreveu, preencher um pouquinho mais da vida de Luciano. E saber um pouco também de Sandra, que naqueles anos 80 conviveu com todo esse grupo. Saudações!

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  2. Nunca encontrei esse grupo, mas fiz as mesmas tentativas em busca de um mundo mais justo. Parabéns a todos que sonharam em melhorar a humanidade, alguns deram a própria vida. Salve Eudaudo Gomes da Silva.

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  3. Hummmm!!!! Saudades…… saudades de um homem sensível… Em prosas e versos, escrevia sobre o seu universo interior e as suas inquietações por um Brasil melhor…

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  4. Conheci Luciano, e também Bomfim, o Brown, Fernando e mais uma porção de gente na residência de estudante de Conquista. Moro hoje em São Paulo. Acho que aquele grupo poderia ter ido mais longe na política da Bahia. Era um grupo honesto no que fazia, talvez por isso não tenha crescido na política.

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  5. Uma pena o fim de vida desse rapaz. Eu o conheci há muitos anos, em Salvador, e tudo indicava que seria um intelectual de destaque. Uma pena ter desperdiçado a vida.

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  6. Conheci essa turma toda em Salvador. Eu ia nas festas da REC, no Pelourinho e acompanhava a luta da turma contra a ditadura militar. Achava bonito aquilo, estudantes alegres, que gostavam de festas e ao mesmo tempo politizados e querendo um país democrático. Conheci todos eles e graças a internet os reecontro agora, depois de tantos anos. Sou de Salvador, me formei (engenharia civil), casei e tenho filhos e vejo que essa turma de Conquista (não esqueço o jeito deles falarem o “quis” de Conquista) me influenciou muito. Vou orar por Luciano, por Perivaldo, pelos outros que também já morreram. Parabéns, conquistenses. Parabéns ao blog e ao blogueiro!

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  7. Reluto um pouco, por receio de parecer impertinente, mas devo fazê-lo!
    Mente brilhante – das mais entre aquelas que me foi dada a chance de conhecer -, e à qual nem sempre consegui acompanhar.
    Trato dócil e amável, enquanto amigo. Inesquecível amigo!
    Chorei a sua partida, tardiamente sabida, e me aperta o peito ainda, rememorá-la.
    O mundo fica menor em interesse e, de cambulhada, menor eu mesmo, pela perda de mais um grande amigo.
    Dê abraços ao nosso Peri da Pituba.
    Saudades eternas!

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  8. Pingback: Edinaldo Andrade
  9. Essa turma serviu de exemplo para muitos conquistenses, e eu me incluo nessa relação. Foram uns batalhadores num momento em que não havia liberdade para nada. É uma pena que Luciano tenha morrido dessa forma. Pela luta que desempenhou era para ser elogiado e estar bem. Que ele descanse em paz! Fiquem com Deus!

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  10. Linda homenagem, Bomfa. Me fez lembrar das festas imperdíveis das residências estudantis, eu não perdia um forró. Essa galera de Conquista fez (e faz) história…

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  11. Histórias marcantes de uma juventude lutadora com objetivos de um futuro melhor! Saudades dessas reuniões! Mãe sempre atenta a tudo, abraços

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  12. Bomfa,
    Parabéns pelo texto, parabéns pela homenagem. Que pena que temos que nos deparar com a perda de amigos, de pessoas queridas, tão queridas! E, muitas vezes, de maneira tão cruel, né? Que Popó descanse em paz, mesmo com toda a sua angústia, sentimento que não pode nos deixar e precisa ter sua medida certa, impedindo que fiquemos apáticos, apenas olhando a vida passar! Vida que segue!

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