Valterci de Souza Freire e o dia do golpe militar

No dia do golpe militar

*Valterci de Souza Freire

Naquele dia, logo cedo fui comprar o jornal para meu pai. Ele o leu, resmungou, pegou o chapéu e saiu. Foi para a Praça Barão do Rio Branco (em Vitória da Conquista), onde se travavam as mais radicais discussões sobre política. Como bom udenista, meu pai odiava o Presidente João Goulart e não gostava da proximidade que a esquerda tinha junto ao governo.  A cidade vivia em ebulição tendo em vista ser o jovem prefeito a favor de “mudanças radicais na sociedade brasileira”. Os comunistas da cidade o apoiavam. Os padres, as beatas, os adventistas, os batistas o odiavam. Almocei, fui para o colégio e lá chegando estava uma confusão generalizada. Muitos estudantes de Salvador estavam na cidade e faziam rápidos comícios em favor do Jango, da “legalidade e das mudanças”.  Lembro-me de um que gritava que “a situação do país não permite que tenha aula. Vamos fazer greve”.  E claro que eu e demais colegas queríamos greve. Melhor, não queríamos aula e sim ficar no meio da manifestação.  De repente, vi a Zélia, ranzinza professora de português, apelidada de Fera da Penha, pela aparência e maldade, entrar na sala de aula. Rapidamente saí da turma e fui quietinho assistir à aula. Lá fora, as palavras de ordem continuaram. Os acontecimentos daquele dia foram repercutidos através do rádio. Carlos Lacerda esculhambava o Jango. Brizola esculhambava o Lacerda. Magalhães Pinto ficava em cima do muro. Na praça as discussões continuavam tensas. À noite, minha mãe chegou com minha irmã mais nova no colo e meu irmão pela mão. Falou que Jango havia fugido, que o Brasil não tinha presidente e quem ia mandar era o Exército.  Tudo estava bem agitado. Quis ir correndo para a praça mas ela não deixou. Não teve missa, não teve expediente no Magassapo (zona de meretrício).  Não vi a hora que pai voltou, mas no dia seguinte falou que “os comunistas estavam correndo que nem barata tonta”. Mas a euforia se transformou em silêncio quando dias depois o Exército chegou à cidade e prendeu o prefeito, vários vereadores, alguns estudantes, o professor Everardo (exemplo de cidadania, honestidade e cultura, teve direitos políticos cassados, nunca mais pode dar aula) e outros.  Péricles, advogado, suicidou-se na prisão (suicídio nunca aceito pela família). Um jipe do Exército chegou na minha rua procurando um comunista chamado Deraldo. Mas ninguém na rua sabia que este era o nome de Dedé, meu tio, e por isso ele não foi preso. Mas dias antes o meu tio pegou uns livros dele lá em casa e prometeu à minha mãe que daria fim nos mesmos. Iria enterrá-los. Assim o fez e até hoje não sabemos onde e nem que livros eram aqueles. Marilda, professorinha da nossa rua e Emília, estudante de Pedagogia, foram convidadas para depoimento, carregadas no Jeep do Exército cercadas por soldados armados. Na cidade foram dias de fofoca, terror, disse-me-disse e muitas meninas em namoro com os soldados. Mas as coisas foram se acomodando. O prefeito foi cassado. O barbeiro fofoqueiro da praça foi preso e, dizem, levou uma surra dos soldados. O padre ficou feliz. Novo prefeito assumiu e os Beatles não paravam do tocar no rádio. Eu estava entrando na adolescência. A ditadura tomou conta da minha, da sua, da nossa juventude. Torturas, mortes, desaparecimentos, prisões, dias, noites e muitos anos de chumbo.  A ditadura só acabou quando eu já estava casado e com filhos. Vade retro, ditadura!

Valterci de Souza Freire, ou simplesmente, Valter é autor de Pratos no Céu e outras crônicas, além de contos e livros na Amazon (Encontros na Rua da Lapa e Três Mulheres Distintas), que você lê também neste blog:

https://blogdobrown.wordpress.com/2016/01/07/pratos-no-ceu/

Leia mais sobre o assunto em Conquista no Blog do Paulo Nunes

E em uma tese de Belarmino de Jesus Souza


10 comentários sobre “Valterci de Souza Freire e o dia do golpe militar

  1. Acho incrível muita gente ainda querer a ditadura militar de volta. Não sou a favor de Lula e seus pelegos não, mas achar que a ditadura é que vai resolver os problemas é um engano muito grande.

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  2. Vade retro ditadura mesmo! Tenho consciência que o Lula e seus capachos acabaram com o sonho de muita gente, mas não é a ditadura militar que vai melhorar o país. Boa crônica, Valterci.

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  3. Devemos ter idade parecidas. Tive a mesma sensação. Morava em Conquista na época, depois meus pais se mudaram de cidade, mas nunca esqueci o medo nas ruas e a movimentação do povo. Havia também muita gente gostando do golpe.

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  4. Não sei mesmo se essas impressões que você teve, Valter – e respeito seu ponto de vista – são piores do que a permissividade atual, em que defesa de grande parte da sociedade é pelo que está errado moral e eticamente falando.

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  5. Esse medo era só de quem andava errado. Quem está certo nunca tem medo. O PT arrombou o Brasil, agora ficam falando mal do regime militar.

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  6. Fora ditadura militar, seja de esquerda ou de direita. Tivemos o exemplo ruim no Brasil e estamos vendo o outro lado, também ruim, na Venezuela.

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  7. Não tem dinheiro que pague a liberdade e o que ditadura, seja de direita ou esquerda, faz de cara é suprimir a liberdade, logo, fora ditadura militar.

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