A visita de N. Srª das Graças

Vitória da Conquista comemora neste 9 de novembro 181 anos de emancipação política. Valter Freire, conquistense que está no Rio de Janeiro desde os anos 70, reverencia a data com uma lembrança da infância na “terra do frio”.

Eu tinha asma quando era criança. Minha mãe fez uma promessa e a asma desapareceu. Lá em Conquista, havia a tradição de levar a imagem de N. Srª das Graças, que ficava 24 horas na casa de quem solicitasse à diocese. Após a chegada da imagem, havia uma reza e depois servia-se um lanche, com biscoitos e bolos caseiros. O altar era feito na sala principal da casa. Cada vizinho ou amigo contribuía com as flores, outro preparava o altar, outro com velas etc. As vizinhas se reuniram na minha casa para fazerem os petiscos. D. Valdiva, D. Marfisa, D. Vitorina, Sá Nô e outras preparavam bolo de puba, de aipim, de fubá, de trigo. Biscoitos chimango, doce, avoador, joaquim-teodoro, de milho. Assavam no forno à lenha que havia no quintal. Eu e as dezenas de meninos da rua ficávamos à espreita de cada fornada para pegarmos, escondidos e rápidos feito ladrão, biscoitos quentes, para desespero e grito das mulheres. Muitas vezes tinha menino pisando em brasa que caia do forno ou queimava a mão nas assadeiras quentes. D. Vitorina pegou uma vassoura e botou-nos a correr. Enquanto isso, D. Nilza preparava o altar com as colchas e toalhas brancas de rendas. Meu padrinho Genaro chegou com caixas de velas brancas e coloridas. À noite, eu e meus 7 irmãos estávamos com roupas novas. Todos os vizinhos e seus filhos, foram à catedral de Nossa Senhora das Vitórias para início da solene visita. Na ida para a igreja, os meninos iam correndo à frente, disputando quem chegava primeiro em cada esquina. Os pequenos caiam e choravam. As meninas, embonecadas, iam duras para não amassarem os vestidos cuidadosamente engomados. Mas os meninos… sujos e suados. Após a missa, os homens seguraram o andor e começou a procissão. Todos com velas acesas. Os meninos então não podiam correr. Olhei e vi uma multidão, pelo menos na minha visão de criança, cantando e acompanhando a procissão, que saiu da Praça da República, entrou na Rua dos Gusmões, atravessou a antiga Rua da Usina e passou em frente ao Magassapo. Esse era o nome da zona de meretrício da cidade. Na esquina da rua haviam dois bares, que ficavam lotados de homens e das “raparigas”. As mulheres da procissão nem olharam para a rua, e os homens também não. Mas os meninos, curiosos como sempre, olharam e pecaram vendo os vestidos curtos e decotes longos das “moças”. Olhei e vi que as “raparigas” se benziam e ficavam contritas ante a procissão. No meu pensamento, naquele momento, todos pecados deixaram de existir, pois Nossa Senhora das Graças estava passando por ali, e por onde passava, deixava um rastro de paz e bondade. Vi que seu Zé Baleia e seu Antonio Birila estavam no bar, escondendo-se para não serem vistos, pois seus filhos e esposas estavam passando naquele momento. A procissão seguiu, entrou na Rua da Vitória, rua que era pavimentada com pedras chamadas “pé de moleque” faziam as pessoas tropeçarem e os homens com o andor terem mais cuidado. A procissão chegou então na minha rua, a Rua dos Pratos. Os vizinhos que não foram à missa estavam esperando a chegada da Santa, que tinha que entrar de costas na minha casa, pois era “pecado” entrar de frente, pois somente nós, pecadores, podíamos entrar de frente na casa. A imagem foi colocada no altar e começou com a reza do rosário, para desespero dos meninos, que só pensavam nos biscoitos e bolos. Minha cabeça ficava no bolo e na Santa. Mais na Santa. Até que a reza acabou e minha mãe e minhas irmãs começaram a servir os doces. No interior, apesar da pobreza, tudo era farto. Todos comeram até se empanturrarem, como dizia vovó. Os meninos foram brincar na rua. As mulheres sentadas na sala conversavam animadamente. As mocinhas e rapazes a se olharem e rirem. As meninas brincavam de roda. Mas os meninos, sujos, suados e sem mostrarem cansaço, brincavam e inevitavelmente surgia uma briguinha para manter o clima nosso da Rua dos Pratos.  Enquanto a Mãe de Deus esteve em casa, fiquei extasiado com tudo aquilo. Tinha 9 ou 10 anos. Me sentia o mais poderoso e abençoado da rua, pois a Santa estava em minha casa, e para pagar uma promessa da qual eu era protagonista. Então, todos me olhavam com respeito, inveja e admiração. Eu era o centro da atenção. Sentia-me mais santo, mais puro, mas perto do céu. No dia seguinte, acordei bem cedo, antes de todos. Corri até o altar. Coloquei uma cadeira, subi e fiz o sacrilégio de pegar na mão da Santa. Olhei para a serpente sob os pés da Santa e rezei para que a serpente não mordesse o pé da N. Sra, pois se isso acontecesse, o mundo iria se acabar. E nada me dava mais medo do que o fim do mundo.  Talvez tenha sido o momento mais mágico da minha vida. A imagem, naquele momento, estava em tamanho natural. E viva, em carne, presente. Rezei aquela reza padrão e fiquei embevecido com aquele momento. Acho que foi a fé, ou mesmo a Graça que me fez nunca mais ter asma. O altar estava cheio de flores. O cheiro de angélica, uma flor branca, com caule comprido, muito comum naquela região, que tem um cheiro agradabilíssimo, tomava conta da casa. Fiquei olhando o rosto bonito, calmo e de paz que tem essa imagem de N S das Graças. A emoção daquele momento é eterna, como é eterna a gratidão que tenho por minha mãe ter-me proporcionado momento tão bonito. Minha mãe chegou e tirou-me da cadeira e falou para não fazer mais, senão todos iriam querer fazer a mesma coisa. Durante o dia, foi um entra-gente-sai-gente, todos rezarem, pedirem e, claro, comer mais um biscoitinho de Dona Nininha, que tanta fama tinha e ainda tem até hoje. Foi um longo dia. À noite, a mesma procissão levou de volta para a catedral a imagem da Santa. Mais uma vez, em frente ao Magassapo, as “raparigas’ se benzeram, os pecadores que estavam na esquina da perdição se esconderam. Mas aquele momento, a libido da meninada ficava mais acesa, pois as “raparigas’ ficavam mais puras, então não era pecado a meninada olhar e passar correndo por aquela rua que tanto mistério e curiosidade despertavam. A procissão chegou na igreja, a Santa entrou de costas também na igreja e ficou no altar até começar outra procissão para outra casa, em outra rua, onde outra criança pudesse ter a mesma experiência que tive.


5 comentários sobre “A visita de N. Srª das Graças

  1. Sempre bom ler as memórias do Valter, que nos aproveitam como personagens secundários, ainda que nelas não citados nominalmente. Vivemos a mesma rua, os mesmos prazeres, os mesmos deslumbramentos em face de fatos do cotidiano…
    Parabéns por mais esse belo texto, Válter!
    Parabéns ao Brown por propiciar esses deleites!

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    1. Eu que agradeço, Fernando, a você, Valter, Claudia, Patrícia, Maria da Glória, José Cláudio, André, Aurélio… A todos que contam as histórias e fazem a história desse blog. Agradeço aos que comentam. O recente comentário de José Bento, por exemplo, agrega informações sobre o nosso saudoso Luciano Popó. Os comentários de Lourival, nosso Teta, enriquecem a memória do blog. E outros tantos que nesses 13 anos participam do Blog do Brown.

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  2. Adorei o texto e segui vc pelas ruas, passando pelo mangassapo, deixamos a santinha na sua casa, rimos juntos dos meninos q furtaram os biscoitos. Vi vc orando a seu modo e no alcance de menino de dez anos, agradecendo pela graça concedida ou recebida – a cura da asma.
    Devolvemos a santinha e matamos a saudade da nossa então fria cidade de Vitória da Conquista.
    Saudades desse tempo.
    Parabéns pelo texto.

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  3. Me amarro nesses nomes da gente do interior: Valdiva, Marfisa, Vitorina, Zé Baleia, Antonio Birila, D. Nininha… Parecem personagens de um livro da nossa literatura. O relato me transportou para aquela procissão e me fez ver como é bom ter memórias, sobretudo de um tempo em que tudo era pureza, diversão, e a riqueza das nossas tradições.

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