Pratos no Céu

Rua dos Prates (ou dos Pratos), em Vitória da Conquista
Rua dos Prates (ou dos Pratos), em Vitória da Conquista

Se você leu – ou ao menos passou as vistas – A Casa que Mora em Mim, livro de autoria de Fernando Fernandes Zamilute, abordado neste blog, tem ideia de quem é Valterci de Souza Freire, ou simplesmente Valter. Em seu livro, Fernando agradece a Valter por sua casa ter ido morar na rua dele. A Rua dos Pratos, ou dos Prates, foi tirada da memória para o impresso com crônicas formidáveis por Valter. “Memorialista de mão cheia e em particular acerca da história de nossa cidade”, ressalta Fernando.

O conquistense Valter está há 42 anos no Rio de Janeiro. Saiu de Conquista, mas Conquista jamais saiu dele. Além das crônicas sobre a famosa rua da “terra do frio”, Valter tem contos publicados na Amazon.

A crônica que você vai ler, mais abaixo, é – de acordo com Fernando Zamilute – “um tributo confortante aos nossos entes queridos que, precipitadamente, houveram por destino partir. E para os que remanescem, consolador!”.

Pratos no Céu fala dos moradores da Rua dos Pratos (ou Prates) que morreram e… se reencontram no céu.

É uma das crônicas da lavra do Valter, quem sabe ele não as reúne, todas, em livro na Amazon ou impresso e nos brinda a todos com essas histórias tão interessantes.

Ele tem, também, no facebook uma página com fotos da Conquista de antigamente. Confira: 

https://pt-br.facebook.com/Fotos-antigas-de-Vit%C3%B3ria-da-Conquista-276638065774881/

Veja, antes, os dois livros que o conquistense publicou na Amazon.

Encontros na Rua da Lapa - capa

Encontros na Rua da Lapa - início

Três mulheres distintas - capa

Três mulheres distintas - início

Pratos no céu

A rua não tem poeira, as casas têm cores diferentes umas das outras, cores calmas, cores de paz, de simplicidade e de alegria. As tardes são longas. As noites têm estrelas, tem frescor, tem brisa. Boninas, rosas, dálias e avencas enfeitam as calçadas. Cadeiras, redes ou banquetas são chamativas para encontros, risadas, contemplações. E encontros, reencontros e encantamentos.

Seu Ioiô Magro já sem dores nas pernas e sem muletas conversa animadamente com Edson relojoeiro e Egídio caçador diz que agora a caça é de proteção à vida de pacas, cotias ou perdizes. Antonio Birila, sorridente, com seu tradicional terno claro de brim, anda ao lado de Aurino preto que fala sobre a vitória do tricolor fluminense. Do outro lado da rua, Alfredo soldado conversa com Filó Farias sobre o tempo perdido com discussões de ódio e política. Filó Farias diz não sentir nenhuma falta das inúmeras casas de que já foi proprietário. Seu Mário do leite já não tem o jeito de tuberculoso que metia medo nos meninos da Rua dos Pratos, ria das histórias que o Bai contava sobre a lenda das bananas com catarro. Nesse momento chega Seu José, com seu jeito de preto velho, exalando bondade, e fala das plantas que cultiva no quintal com a ajuda de sua também bondosa e sorridente filha Isaura. O outro José, zelador da chácara, chega de longa viagem onde foi regar uma árvore imensa que nasceu em determinado túmulo. Seu Rubinho, ainda de poucas palavras, sempre de braços dados com D. Rosa, passa cumprimentando a todos. Vitória, a falante negra que lavava roupas em algumas casas, já está livre da doença mental que a acompanhou durante a vida, principalmente quando seu filho Valdo desapareceu. E ao seu lado, também já livre das perturbações mentais, Cumpadi com roupas limpas e de banho tomado, continua chamando as pessoas de Compadre e Comadre.

Mas nesta rua tem atalho para o campo dos Alecrins e por esse caminho seguem Joaquim Terto Cobra, agora sem cheiro de bebida, acompanhado de Seu Joãozinho Varredor de rua, Sá Dudu, Seu Gabriel, que já não puxa da perna por causa da mordida de um porco, D. França, Seu Manezinho de Chichi, Vitória Buião, a doce Zenaide de Zé da Paz, D. Raquel Flores, Seu Belisário barbeiro e D. Mocinha, que agora já não usa roupas sujas e nem fica falando mal dos vizinhos.

O turco Beijamin, cabelos brancos, pensativo, confidencia com Dedé, irmão de D. Nininha, a tristeza de ver tantos árabes saindo das duas terras para outros países, não só por motivos econômicos, mas por guerras e perseguições religiosas. Diz não entender porque brigam tanto se todos são filhos de Abrahão. Dedé diz que, apesar de tudo, a migração é importante para integração de costumes. D. Aurinha chega e fala com o marido que Fernando, que agora não dá trabalho, fez uma viagem para visitar, em sonho, a sua Haidê. Seu Salu, sempre com sua capa colonial, patriarcalmente, aprova a viagem. Seu Ramiro sapateiro, com o olhar doce de sempre, contempla o encontro.

Risos, conversas e conselhos criam um clima de harmonia com as matriarcas. D. Sanô, agora mais que nunca conhece as estrelas. D. Valdiva continua com a cativante gargalhada, conta histórias enquanto afaga os belos cabelos da filha Ainê. D. Mariquinha, a mais velha da rua, já não usa o luto eterno da viuvez, está com um belo vestido florido e deixou para trás a tristeza que trazia no olhar. D. Miri já não fica na janela. D. Otávia, e seus olhos verdes, agora já não tem, assim com seu marido Vicente Saboeiro, a surdez que os acompanhava a vida toda. A velha Rita, mãe de Egídio, já não tem jeito de bruxa e se mostrou uma boa mulher. D. Nininha mantém o jeito cativante e bondoso. D. Nenzinha fala pausadamente sobre seu tempo de feirante. D. Lurdes do leite já não vende leite, diz já ter feito sua parte. D. Chiquinha já não varre a casa e deixa o lixo acumulado por semanas como fazia lá atrás, e a filha de Inocêncio, mãe de Carlinhos, já não chora.

No outro lado da rua, outra geração, mas integrada na rua, começa a formar. Delva não briga mais com os meninos. Jorge já não tem as marcas no rosto, aquelas marcas da brincadeira do cigarro. Nice de Filó não estuda o tempo todo, é mais feliz e risonha. Nilzete já não é a menina mais feia da rua. Margarida continua tão bonita como era na Rua dos Pratos. Aidil é a médica da rua, apesar de não ter muito que fazer já que todos estão tão felizes e a doença já não existe. Luzinete, baixinha e bonita, ri juntamente com Jailza, Geraldo, Zé Baleia, Giltinho, Jonas e Hamilton Camionheiro, filhos de Sanô e Salu. E quem chegou por último foi Nicinha, que foi recebida com festa, carinho, amor e devoção.

Delva fixa o olhar, sorri e corre para receber o amigo. Abraça-o demoradamente, leva-o para o meio das matriarcas e diz: Mãe, olha quem acaba de chegar – Sandoval corre para um abraço emocionado, chora copiosamente nos braços de D. Nininha que o leva para o campo dos Alecrins, entregando-o nos braços de D. Raquel.

Pratos existem em todas as casas. Prato é depositário de alimento. Alimento é vida. Vida é o que passamos de bem e de mal. De bom e também de mau. Mas a vida continua e o caminho é definido, indefinido, é sonho, é momento. Nos pratos do céu têm conhecidos e não conhecido. São todos pratos.


22 comentários sobre “Pratos no Céu

  1. A saudade como paraíso poético. As imagens delicadas sempre me comovem. Encantador! Obrigada, Válter!

    Marisa

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  2. Bonfa, permita-me chamá-lo assim, muito obrigado pela postagem. Demorei a escrever face às belas e verdadeiras palavras dos amigos, conhecidos e também desconhecidos. Rafael, que é Anjos, disse que “a ideia de que o paraíso é a ausência das preocupações terrenas faz pensar , por um segundo, que o paraíso poderia até ser aqui”. Sim, a Rua dos Pratos e imediações é responsável por multiplicar o molecote Válter em Valterci ou Val. Obrigado meus amigos pela emoção que sinto ao ler o que escrevi com toda a força da minha saudade. Amo vocês. Vocês são foda. E me incentivam a escrever mais. Bonfa, muito obrigado!

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    1. Válter, é com absoluta satisfação que leio seus textos. E o seu prestígio ao blog nos faz todos – conquistenses ou não- felizes!
      Felicidades!
      Aguardamos outras crônicas.

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  3. Um conto que brinca por parecer não ter enredo.

    A proposta vai muito além e o autor nos presenteia com um breve relance do que pode ser o paraíso.

    A ideia de que o paraíso é a ausência das preocupações terrenas faz pensar , por um segundo, que o paraíso poderia até ser aqui

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  4. “Benditos os que conseguem semear emoção através das palavras” (Fernando). Eu confesso que tentei descrever aqui a minha emoção, mas me falta organização nas palavras… então meu caro Val, muito obrigado por nos presentear com tão belo texto!!

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  5. Todas as crônicas que leio do Val me remetem a histórias que não vivi mas que me inserem e acabo me tornando uma personagem de cada história. Lá pelas tantas estou eu viva naquele contexto e reconhecendo em cada pessoa alguém que se torna tão real, familiar, com quem até tento conversar. Da simplicidade e dos detalhes vem a magia que nos encanta. Parabéns! Continue a nos proporcionar esses momentos que passam a ser reais e pertencer a uma história vivida.

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  6. Pratos no Céu…Que belíssima crônica!!! Leio, releio e me emociono profundamente, como se fosse a emoção da primeira vez! Gosto disso…Obrigada, Valter! E continue nos deleitando com suas maravilhosas crônicas! Somos os verdadeiros privilegiados.

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  7. “A rua não tem poeira, as casas têm cores diferentes umas das outras, cores calmas, cores de paz, de simplicidade e de alegria. As tardes são longas. As noites têm estrelas, tem frescor, tem brisa. Boninas, rosas, dálias e avencas enfeitam as calçadas. Cadeiras, redes ou banquetas são chamativas para encontros, risadas, contemplações. E encontros, reencontros e encantamentos.”

    Benditos os que conseguem semear emoção através das palavras. Divinos, os que conseguem fazê-lo através da palavra escrita, que em seu intrínseco paradoxo, ao mesmo tempo em que omite, revela; ao mesmo tempo em que é síntese restritiva, é porta aberta ao insondável, desgarrando-se do simples encadeamento de letras em palavras, destas em frases, destas outras em textos… para tomarem a grandeza que lhes possa emprestar a nossa imaginação.
    Válter é uma dessas pessoas com o dom intangível de verter em texto as memórias que calam no seu espírito, benfazejo e generoso espírito que nos arrasta a seguí-lo, e fruir também de nossas mais recônditas memórias.
    Lindos os seus textos que, para além disso – que já é muito -, nos atiça a inveja e o desejo de também escrever.
    Que sorte tê-lo reencontrado após tantos anos de distância, remetendo-me eu, dessa maneira, a mais um paradoxo: terá o tempo de distância nos afastado ou, ao revés, estreitado os laços que nunca, de fato, foram rompidos?

    Parabéns, Brother!!!

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  8. Embarquei na máquina do tempo e chorei de saudade, mas não foi um pranto triste, temos que viver o presente sem esquecer o passado.
    Obrigado, amigo, por me abrir a porta da máquina do tempo.

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  9. Valeu irmão!!!! como sempre uma delícia essa viagem no tempo. Parabéns, vc escreve muito bem

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  10. Ótimos os textos. Continue escrevendo, rapaz, você tem o dom de escrever crônicas. Nossa Conquista é muito boa em ter filhos talentosos. Parabéns.

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  11. Esse é o Val que eu conheço! Sensível e Brasileiro. Na essência, um conquistense, seja lá onde esteja: Rio de Janeiro, São Paulo, Paris ou Nova York. Uma delícia dividir essas lembranças com ele.

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  12. Valterci (Valter ou Val) é simplesmente genial. Tem a capacidade de cativar o leitor como alguns dos maiores nomes da nossa literatura. Bonfim foi muito feliz em trazer esse nome para conhecimento de mais pessoas. Quem gosta de um autor que conversa conosco através dos seus textos mais do que escreve para nós apenas certamente não vai se decepcionar em ler mais do Valterci! Parabéns ao Bomfim, parabéns ao Val!

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  13. Devo dizer, meu amigo Bomfim que me vi de repente voltando ao passado na terra natal, apesar de não identificar ninguém dos personagens da crônica, mas me senti criança e tentei lembrar de alguns nomes que pudesse dizer alguma coisa. Muito boa a crônica.

    Nattinho

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  14. Porretinha, Bonfa. No começo achei que tinha personagem demais e pouca história, mas a medida que fui lendo, peguei logo o espírito da coisa, por assim dizer….

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